Marcelo Zormann

Como eu venci o jogo pela minha própria vida

Eu venci o jogo mais difícil de todos: o jogo pela minha vida.

Sei que é um tabu, mas eu queria falar com você o que realmente aconteceu. A ideia nunca foi que as pessoas tivessem pena de mim. Eu não quero aparecer, eu não quero ser o coitado. Acredito de verdade que se ajudar uma pessoa, mesmo que eu não saiba, já terá valido a pena e terei cumprido minha missão. Isso me ajudou a me abrir para contar a minha história.

Aos 22 anos, eu não aguentava mais viver. Eu queria sumir, sem exageros. Eu só queria dar um fim. Um fim à minha vida.

Eu mantive esse segredo por muito tempo. Eu tinha vergonha de mim mesmo por pensar em suicídio e guardei isso comigo, talvez por tempo demais. Hoje eu percebo que eu falhei em pensar assim.

Meu último torneio como tenista profissional foi em um Future da Alemanha, em julho de 2018. Perdi na estreia por 6/1 e 7/5 para um indiano que aparecia no ranking como 1913º do mundo.

Quatro meses antes, joguei um torneio em Antália, na Turquia. Até ganhei um jogo na estreia. Sendo bem honesto, não sei nem como virei aquele jogo. Parecia que eu tinha ataques de pânico. Eu me tremia da cabeça aos pés. Tudo ficava embaçado, não conseguia enxergar com clareza. E, acima de tudo isso, eu sentia um medo gigante.

Eu nunca odiei o esporte em si. Tenho um sentimento muito forte de gratidão pelo tênis. Mas eu não queria mais aquilo. Não sabia mais quem eu era. Eu me isolava nos torneios. Quase não falava, quase não brincava. Sinceramente, eu não me reconhecia. O tempo custava a passar. Eu não me sentia solto. Eu não me sentia vivo.

Sempre fui um tenista muito brigador. Cerrar o punho, vibrar soltando o grito entalado na garganta ao vencer um rali longo após correr atrás daquela bolinha maldita. E eu perdi a minha essência.

Marcelo Zormann - Grito

Pode parecer estranho, mas eu sentia um alívio gigante quando eu perdia. E eu não conseguia mudar isso de jeito algum. Toda vez que eu perdia, parecia que um peso muito grande tinha saído das minhas costas. Voltava a sorrir, a brincar, a interagir. Eu voltava ser eu mesmo.

A primeira pessoa que eu liguei quando eu parei de jogar, em 2018, foi meu pai. Foi difícil de me abrir, mas eu consegui falar. É difícil dizer “eu estou com depressão”. A palavra é pesada. É um tabu difícil de ser quebrado. É complicado explicar. Quando eu falo sobre depressão parece que quem está de fora não consegue entender. Porque nem todo mundo viveu essa mistura de sentir tudo de ruim e um vazio gigante ao mesmo tempo.

Fica tudo escuro. Você perde todos os sentidos, perde a esperança. Eu perdi todas as esperanças de que poderia voltar a me sentir bem de novo. Você sente essa tristeza interna que não tem explicação. E, ao mesmo tempo, eu não sentia nada. É um vazio muito grande dentro de você, na sua alma.

Me perguntavam por que eu estava para baixo… e eu sinceramente não sabia explicar. Vinha do nada. Não tinha hora, não tinha local. Uma energia entrava dentro de mim e me desligava por dentro. E eu sentia um vazio sem tamanho. Mesmo que eu tentasse pensar positivo, não resolvia. Até hoje eu tenho dificuldade de colocar isso para fora.

Eu não tinha mais razão de viver. Eu só queria acabar com toda essa tristeza, essa angústia… Esse vazio. A única saída que eu via era tirar a minha própria vida. O que me manteve firme foi pensar na minha irmã mais nova. Ela tem 14 anos. E eu ficava pensando nela… não sei nem te dizer o porquê.

Quem está em depressão não acredita em nada. Não é falta de Deus, não é carência ou “invenção da sua cabeça”. O melhor a se fazer é dar espaço e encorajar a procurar ajuda. Em pleno 2020 ainda há um tabu muito grande em ir ao psicólogo, ao psiquiatra. Aceitar essa opção é automaticamente ser taxado de “maluco”.

Talvez o meu erro tenha sido não procurar ajuda antes. Eu já tinha lido na internet e esperava ouvir o diagnóstico de depressão quando eu procurei auxílio. Você não vai a um médico para se curar se você está doente? Doenças mentais são também doenças que precisam de acompanhamento médico como as outras. A diferença é que não era minha garganta ou meu estômago que doíam. O problema é que os sintomas não são tão visíveis. Não há tosse, febre ou vômito. Ter depressão é comum e tem muita gente que tem e não sabe, não cuida. Pode acontecer com qualquer pessoa. Muitas vezes você vê a vida de alguém e não sabe o que está passando na vida dela.

Marcelo Zormann na Copa Davis de 2016

Eu me sentia péssimo no ano em que parei de jogar. Comecei a sentir a obrigação em coisas que eu apreciava. Senti uma queda de energia, como se eu estivesse pesado para cumprir a rotina de um tenista: treinar, fazer a parte física e jogar. Eu não queria mais sair de casa.

Sempre fui um cara mais fechado. Eu tinha medo de realmente me abrir para as pessoas e elas se sentirem mal por verem que eu não estava bem. Eu não quis me abrir com meus amigos e as pessoas mais próximas. Realmente achava que podia vencer essa fase ruim sozinho. Então resolvi guardar tudo para mim.

Foi o que aconteceu comigo. Eu demorei demais a me abrir. Eu demorei a procurar ajuda. Muitas vezes a  gente se nega a chegar e assumir que não está se sentindo bem. Eu não queria ser vulnerável, eu sentia que aquilo era uma fraqueza minha e tinha que permanecer comigo.

Chegou a um ponto crítico. Hoje eu percebo que faltou ter paciência. Eu não me perdoei como devia. Converso bastante sobre isso com a minha psicóloga no meu tratamento. Ainda pego me cobrando por coisas pequenas mesmo.

Eu me cobrava demais. Muito mesmo. Fiz duas giras longas sem pausas. Foram três meses direto de viagem. Nada era calculado. Era tudo na base do desespero. Eu achava que tinha que jogar mais e mais. Eu precisava jogar para ganhar confiança. Precisava de confiança para ganhar jogos. Precisava ganhar jogos para subir no ranking. Precisava… eu esquecia que precisava respirar.

Não me dei uma semana sequer de descanso. E tudo isso foi acumulando. Eu realmente achava que era falta de treino, de ritmo. Se eu treinasse e jogasse mais, se eu me esforçasse mais, as coisas iriam melhorar. Mas isso não aconteceu. Pelo contrário. Foi piorando a cada dia. Virou uma bola de neve. No final, eu não consegui nada do que “precisava”.

Eu nunca tive uma pressão externa, foi sempre interna. É engraçado falar em pressão porque é difícil materializar algo tão abstrato. Faz parte da vida humana, não está restrita ao tênis. Cada um sente ela de uma forma. O tenista juvenil brasileiro fica preocupado em ir bem para aparecer e a exposição se converter em apoio e patrocínio. A questão da pressão é o “como” você lida com ela, se você vai deixar te afetar ou não.

A pressão é mais intensa na vida do atleta. Existe um ranking. A sua meta é baseada principalmente naquele número. É como se aquele número definisse o seu sucesso ou seu fracasso. Já tinha vencido Future, fui um dos brasileiros mais jovens até hoje a levantar um troféu como profissional, em 2013, com 17 anos. E até 2016 eu conseguia chegar perto ou muito próximo. Cada um sente ela de uma forma. Não é restrita ao tênis. Não consegui atingir minhas metas em 2017. Nem as menores. E aquilo me consumiu.

A última vez que eu me senti vivo em quadra foram nos torneios no Brasil, no final do primeiro semestre de 2018. Depois do pânico na Turquia, pude jogar em casa e foi positivo. Mas logo na gira seguinte, na Europa, tudo voltou numa intensidade ainda maior. O que eu via era que era o jogo mais difícil: estava lutando comigo mesmo para seguir vivendo. Eu espero não passar por isso de novo.

Eu não aguentava mais e decidi parar de jogar. Lembro muito bem daquele momento. Sentei em um banco, em um parque público em São José. E eu estava me sentindo muito mal. Decidi ligar para o meu treinador, Thiago Alves, e falei “não vou para Argentina de jeito nenhum”. Ele tentou me acalmar, conversar comigo, mas entendeu.

Foi então que eu contei que queria parar de jogar. Foi duro aceitar isso. A decisão mais difícil da minha vida. A decisão que eu teimei a tomar por muito tempo. Eu sabia que era a escolha certa, mas eu sou tenista desde que me entendo por gente. Quando teve o Challenger em Campinas, em outubro de 2018, eu parei.

Chorei. Chorei muito. Ao mesmo tempo, foi alívio muito grande. Não conseguia controlar aquele turbilhão de emoções. Era como se eu não estivesse mais pesado.

Meu avô me ensinou para jogar e é meu maior torcedor. Desde que eu parei ele tenta me motivar, sem me pressionar. Às vezes eu até brinco para ele ter calma. O apoio de toda minha família foi muito grande, ainda mais agora que penso em voltar.

Eu contei sobre a depressão para minha família e dei muita sorte de ninguém me condenar por isso. Infelizmente, ainda é frequente. Comigo foi exatamente o oposto. Tive o apoio de todo mundo e ninguém ficou chateado porque eu parei de jogar. Ninguém achou que eu estava exagerando ou inventando doença. Eles estão me dando o empurrão que eu precisava para voltar a jogar.

Eu precisava de um tempo. Eu nunca realmente pensei em parar para sempre. A minha ideia, quando eu parei em 2018, era cuidar de mim e depois voltar.Para falar a verdade, eu até queria ter voltado antes. Ajudei em uma academia de tênis, em Paulínia, e acabei me sentindo preso lá… porque eu não via o sentido de estar ali dando aula. No final de 2019, eu voltei o tratamento e ficou tudo muito claro: eu vou voltar a jogar.

Não vou mentir, eu tenho medo de sentir todos esses sentimentos de volta. Demonstrei muita coragem falando aqui, mas ainda tenho muito medo da competição.

Tento enfrentar isso e quero fazer minha volta com cautela, um passo de cada vez. Se eu não tiver bem para viajar, fico na minha. Minha ideia é voltar no Interclubes na Alemanha. Tudo o que eu vivi… foi como um pesadelo que eu não conseguia acordar. Mas, pela experiência que eu tive, acredito que agora eu estou mais maduro para identificar os erros que eu cometi.

Não é fácil. No papel, contando essa história para vocês, parece simples. Pode ser que eu falhe de novo, mas vou tentar não fazer acontecer. Quero resgatar o Zormann mais jovem, que entrava solto em quadra. Eu era destemido. Eu não quero cometer os mesmos erros. Não é fácil também. No papel parece simples. Pode ser que eu erre de novo, mas vou tentar não fazer acontecer.

Independentemente de voltar e não conseguir ir tão bem, eu tenho esse sentimento de que eu ainda não dei o meu melhor. Eu posso mais. Não sei se eu vou bater meu melhor ranking ou não, mas eu preciso tentar. Eu devo isso a mim mesmo. Ninguém precisa ganhar 20 Grand Slams. Não é isso. A auto-valorização muito importante. O desafio é achar o equilíbrio.

Quando eu parar novamente, quero ter a satisfação de que eu fiz o meu melhor, de que eu fui até o fim. Não interessa se eu for top 100 ou 600, quero sentir a sensação de que escrevi a minha história nos meus próprios termos. Depressão não é corpo mole e vencer esse jogo não foi tranquilo. Espero não ter de derrotar a doença de novo, mas sei que a solução para isso é procurar ajuda. O caminho da vitória não passa só por mim.

Hoje eu consigo ver que valeu a pena ter aguentado ali firme, não ter feito nenhum tipo de besteira, ter me mantido firme por mais que tenham tido momentos que foram muito difíceis. Valeu a pena ter sido resiliente. Se alguém me perguntar uma palavra que define a minha história é “resiliência”. Se você que está lendo ou ouvindo este texto, estiver se sentindo mal ou se identificou, procure ajuda. Tente ficar firme. Eu prometo que vale à pena. Você vai se sentir vivo de novo.

Créditos das fotos: Cristiano Andujar/CBT, João Pires/Fotojump e arquivo pessoal;

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