Gabriela Cé

Minha maior batalha: eu contra meu próprio corpo

“Relaxa, descansa! O controle não tá contigo, só fica aí”.

Foi muito difícil de aceitar, mas eu não tive opção. Me considero uma guria muito corajosa, que não faz apenas aquilo que é conveniente, mas também o que realmente é o melhor. Sinto que tive essas minhas características totalmente anuladas. Naquele momento, eu nem conseguia pensar em jogar tênis. Só queria voltar a ir ao banheiro sozinha.

E aí tu não pensa: “Nossa, mas e tênis?”. Eu não estava pensando no meu futuro nas quadras. Eu estava no modo de sobrevivência.

Estou contando isso para você porque não tem motivo para esconder: em setembro do ano passado, eu fui diagnosticada com uma doença autoimune, chamada espondiloartrite, que deve me acompanhar pela vida inteira.

Esconder só mostraria uma fraqueza de não poder ser quem eu sou. Eu quero contar para você porque provavelmente tem outras pessoas lidando com essa doença. Precisamos de pessoas que se expõem, que se abrem e que mostram que mesmo com adversidades tem um caminho e existem outras alternativas.

Cheguei a um ponto que era o ponto que eu queria estar antes de tudo isso acontecer e que eu não conseguia chegar. Na hora foi, meu Deus, foi horrível! Foi tipo desesperador, foi uma montanha russa de emoções. Mas assim, eu sabia que eu ia melhorar, que eu ia sair dessa.

Tudo começou com uma dor no ombro. Era minha segunda viagem com o Renato Pereira, irmão de Teliana, meu novo treinador. Ainda joguei mais uma semana na República Tcheca, mas decidimos que não tinha propósito algum continuar na Europa. Decidimos voltar para Porto Alegre em setembro.

Meu corpo simplesmente travou. Eu não conseguia nem levantar da cama sozinha. Fiz uma série de exames e pedi que os médicos só me tirassem do hospital quando descobrissem o que eu tinha. O resultado só sairia em 10 dias, então os médicos me disseram para voltar para casa. Segundo eles, não era uma infecção relevante para internação.

Depois de uns dias tomando vários remédios, fui à reumatologista. Ela me deu o diagnóstico de artrite reativa, receitou o tratamento de corticoide e sugeriu que parasse de tomar quando voltei a jogar depois de seis semanas, em Rio do Sul. Ali eu percebi que era mais grave do que artrite porque os sintomas foram voltando aos poucos.

Foi outro baque para mim. O tratamento não vinha tendo a eficácia que eu gostaria. O quadro era mais complexo e eu não podia fazer nada. Em alguns dias, eu queria fazer uma coisa e o corpo pedia outra. Pensei que talvez não conseguiria mais jogar tênis, eu estava exigindo demais do meu corpo naquele momento.

No domingo seguinte, joguei um torneio de grana em Lajeado. Acordei toda inchada na segunda e aí surgiram outros sintomas, como diarreia e febre. A médica concluiu que era uma doença autoimune, que tem uma questão mental muito forte. Então, a medicação é contínua e voltada ao quadro psicossomático.

Se eu sabia que eu ia jogar tênis de novo? Não sabia e não tinha como saber essa resposta. Mas eu não conseguia pensar em jogar tênis sem ser antes primeiro um ser humano e depois pensar em ser uma tenista.

Nos dias mais frios, é um terror treinar aqui em Curitiba, para onde me mudei neste ano para começar o trabalho com o Renato. A espondiloartrite, doença inflamatória autoimune que contraí, causa inchaço e rigidez assimétricos nas minhas articulações, então meu lado direito ficou prejudicado e o esquerdo já era mais desgastado por eu ser uma tenista canhota.

Tem semana de treino que é longe do que a gente gostaria, mas eu simplesmente falo: “Vamos lá, qual a solução que vamos buscar para hoje?” Levanto da cama disposta a encontrar uma maneira de evoluir.

O Renato tem total importância nesse jeito mais leve de encarar. Pela história de vida dele e da Teliana, os problemas têm uma proporção muito pequena.

Quem me encorajou a ligar para o irmão dela foi a própria Teliana. Eu não o conhecia muito bem, foi mais da convivência com eles na Fed Cup. Ela sempre foi um ídolo que eu adorava escutar e hoje a tenho como uma irmã. Depois de começar o trabalho, tenho certeza de que se o tênis brasileiro tivesse mais 10 Renatos, estaríamos em outro patamar.

O Renato é um dos melhores seres humanos que eu tive o prazer de conhecer, não à toa a Teliana e ele tiveram uma história de sucesso. Ele me preza em todos os sentidos. Foi a cereja do bolo que faltava para eu mudar. Estou muito contente com o trabalho e acho uma falta de respeito não permitirem que ele participe mais ativamente no tênis brasileiro.

Aqui no Brasil, nos acostumamos a ficar contentes com migalhas. De migalha, ninguém vive. Não se vai a lugar algum com pensamento pequeno, tanto na formação de tenistas quanto de treinadores. Qualquer juvenil talentoso é o próximo Guga, mas pouco se faz para que o jogador evolua.

Eu fui uma juvenil muito fraca. Eu cresci com a mentalidade de “empurra mais uma pro outro lado”, “vamos, cavalo!”. Vários juvenis talentosos chegam com vícios ao profissional que custam uma carreira. E já vimos que só talento não resolve absolutamente, mas seguimos errando nossos modelos.

O tênis brasileiro não cansa de errar. Tivemos grandes juvenis talentosos mas temos uma base muito fraca. É sempre na base do teu esforço próprio, não tem um trabalho sólido que te sustente na carreira. E aí vem a frustração no profissional porque a gente já viu que talento não resolve absolutamente nada. Faz a diferença mas é um detalhe do detalhe.

Juvenil brasileiro cresce ouvindo que tem de ganhar a qualquer preço. Empurra mais uma para o outro lado. E aí você quer ganhar o Gerdau, o Banana ou Roland Garros de qualquer jeito. Só que não tu não tem o pé no chão, não te mostram que o caminho é longo.

Quando você é juvenil você ainda é cru, joga da sua maneira. Aí depois que o profissional entra, vem o baque: você começa a ouvir que tem de jogar assim ou assado. Não se trabalha dentro da tua personalidade, de como tu é! Falta respeitar a característica do jogador, sua essência, e um trabalho sério e a longo prazo com a base.

A minha forma de ter prazer representando o Brasil é muito diferente do que eu tinha quando era juvenil. Penso em inspirar outras gurias brasileiras a jogarem tênis independentemente do nível. Quero demonstrar o que nosso esporte pode agregar na vida das pessoas, tanto em valores quanto em saúde.

Existe uma cultura de curto prazo no tênis juvenil brasileiro. Uma vitória ou um título a qualquer custo, o que nos deixa na metade do caminho, influenciando o desenvolvimento de técnicos e tenistas. Precisamos pensar na carreira como um todo desde o início.

E é por isso que hoje o tenista brasileiro hoje opta pelo caminho da universidade. Não se tem esse sonho, não tem referência. Tu acaba indo pra universidade, só que não é que a universidade é a melhor. As mesmas frustrações que tu estava encontrando ali no do profissional tu vai encontrar lá. Porque no final das contas tu não vai chegar lá e vai ter o melhor técnico te esperando e te dando o caminho, tu vai ser mais um.

E aqui é exatamente isso que acontece, a gente não tem pessoas capacitadas pra te levarem até o topo e as poucas que tem muitas vezes não estão dispostas ou falta alguma coisa, falta viver o tênis de verdade assim, propriamente experiência. Esses são alguns dos muitos dos pontos que eu sempre senti durante a carreira. Há uma carência muito grande. E eu 95% dos tenistas e as tenistas muitos vão falar as mesmas coisas.

Evoluí muito desde que fui treinar em São José dos Campos, em 2013, com o Fernando Roese. Mas eu precisava mudar, desde 2019 eu sentia que tinha de buscar saídas táticas com alguém que conhecesse outra Gabriela, não a criança que treinava no Instituto Gaúcho de Tênis.

Troquei de técnico há oito meses, é muito recente. Fui para a Europa jogar a Billie Jean King Cup e minha ideia era ficar lá por tempo indeterminado e encontrar um treinador. Busquei, vi algumas possibilidades e aí pensei no Renato quando encontrei o Zé Pereira, irmão dele, em um torneio em Antalya. Começamos o trabalho por FaceTime e ele já conseguiu me ajudar em algumas questões.

Trabalhando com o Renato, vejo que muitos atletas não têm a minha oportunidade, de mudar a maneira de ver o tênis. Quando joguei qualis de Grand Slam, eu não estava preparada nem mentalmente nem tenisticamente. Hoje me sinto pronta para competir com gurias de altíssimo nível.

Claro que é legal estar lá, mas hoje em dia eu vejo de outra forma. Para mim, o que me preencheria é de repente ter resultados lá. Mas assim naquela época eu sabia que eu não estava preparada pra isso, assim, nem um pouco.

Hoje eu vejo assim, que quando eu for de novo vai ser uma coisa totalmente… É só mais um torneio no final das contas. Então, eu vejo muito mais pelo lado do processo de evolução da forma que eu tenho que jogar, da evolução do meu próprio jogo do que “Ah, é um Grand Slam ou um 25 mil”.

Para mim, hoje em dia, ainda mais depois das questões sérias de saúde que eu tive, eu estou jogando torneio de grana e é isso. Acho que essa questão de querer estar num Grand Slam era muito marcante quando era talvez uma guria que tivesse os valores tão sólidos quanto hoje, sabe?

Honestidade, disciplina, comprometimento, trabalho árduo e, principalmente, amor. Ser obcecada no que faço para não apenas mais uma.Desde que comecei a jogar tênis, com quatro anos, no Grêmio Náutico União, e desenvolvi na Associação Leopoldina Juvenil, que é minha raiz.

Não sei se vou conseguir treinar mais dois turnos pelo resto da minha vida. Punho, dedo e joelho inchados são dores que eu nunca tinha experienciado antes. Acredito no meu processo de evolução, seja em Grand Slam ou W25. A doença serviu para eu tirar boas lições disso tudo, seguir com a medicação e me ajustar ao meu novo normal.

Sendo bem sincera, estou na melhor fase da minha vida, contente com o que estou fazendo, como estou treinando e em estar jogando tênis. O W15 de Curitiba, em que fui campeã em dezembro, foi muito simbólico para mim. Fazia tempo que meu corpo não recebia aquela carga de torneio.

Na semifinal, eu nem sabia se ia conseguir entrar em quadra porque no dia anterior precisei me retirar da dupla por dor no joelho. Com meus problemas de saúde, tudo está redimensionado. Antes, o tênis tinha 95% de ocupação na minha vida, hoje é meu trabalho e também há espaço para a Gabriela ser humano, mulher, amiga e filha.

Os médicos me aconselharam a cancelar todas as competições. Eles me disseram que meu limite é meu corpo. Em dezembro, quando ganhei em Curitiba, foi a primeira vez que consegui treinar 10 dias ininterruptos desde que comecei a tomar os imunossupressores, em outubro. Até então, eu só conseguia treinar duas vezes por semana.

Eu acho… acho não, tenho certeza de que perto do que eu passei antes hoje eu estou o melhor que eu poderia estar. Se vou seguir sofrendo, não sei, só o tempo, as medicações, a minha resposta vai dizer. Mas eu sei que a forma como eu estou levando a minha vida hoje vai fazer com que ajude na minha cicatrização de tudo que eu passei.

Quero entregar ao tênis pelo menos alguns por cento do que ele me entregou, nem que seja um direcionamento para bater bola com as gurias mais jovens. Converso muito com o Renato e com a Teliana sobre isso, sobre como a gente pode ajudar, como a gente pode de repente até trazer gurias pra treinar aqui em Curitiba, dar um direcionamento.

Não sei exatamente meus próximos passos, mas a mensagem que eu tento deixar para as gurias mais jovens é que todo mundo é capaz de fazer o que quiser desde que trabalhe para isso. A gente pode ser feliz com muito menos. Não duvide do seu próprio caminho e tenta focar na solução, não no problema.

Foi muito duro, mas ao mesmo tempo foi lindo demais ter de passar por tudo isso e ver que eu consegui me superar. Estou jogando um nível de tênis que talvez eu nunca tenha jogado antes, com tudo isso em ordem. Não sei se é cedo, tarde ou o momento certo, mas vou sair desse processo 100% resolvida e continuar trilhando meu próprio caminho.

Créditos: João Pires, Fotojump, Cristiano Andujar/CBT, Arquivo Pessoal

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